José Manoel Ferreira Gonçalves Opinião
Ferrovias para poucos
Ferrovia no Brasil é uma matriz logística subutilizada
Artigo escrito por José Manoel Ferreira Gonçalves, engenheiro e presidente da Ferrofrente (Frente Nacional pela volta das Ferrovias)
Está em curso no Congresso, de forma quase silenciosa, mais um atentado à soberania brasileira: o malfadado projeto de lei 261, do Senado, que deixa de exigir a concessão para novos projetos de ferrovias, os quais poderão ser feitos, segundo a proposta, por meio de simples autorização a qualquer investidor privado.
É tudo aquilo que as grandes empresas que dominam o setor desejam: utilizar nossos trilhos de acordo com seus únicos propósitos, sem se importar se o modal permanecerá restrito ao transporte de outras mercadorias e à população. É a continuidade, com o carimbo oficial, daquilo que essas empresas estiveram fazendo nas últimas décadas: explorando as ferrovias sem qualquer contrapartida de interesse nacional.
Tratado como o novo marco regulatório do setor, o PL 261/18 é uma tragédia para quem deseja ver as ferrovias ocuparem aqui novamente o devido espaço como vetor de integração. Aprová-lo será dar carta branca à iniciativa privada para executar o papel que deveria ser exercido pelo Estado – o de induzir a recuperação e melhor utilização da nossa combalida malha ferroviária. Obviamente, interesses comerciais ficarão acima de qualquer projeto de interesse público. Um marco regulatório, enfim, que abre a porteira da boiada também nas ferrovias.
O Brasil sepultou nas últimas décadas o transporte de passageiros em trens de média e longa distância, algo inadmissível num país de dimensões continentais. Enquanto as concessões estiverem concentradas nas mãos de poucos operadores, teremos frustrada a possibilidade de transportar mercadorias e produtos agregados (com exceção de grãos, açúcar e minérios). Dependeremos cada vez mais das rodovias e do humor dos caminhoneiros para movimentar a economia.
O governo federal tem a obrigação de olhar para as ferrovias com uma visão mais ampla. Não pode ser míope a ponto de simplesmente lavar as mãos e deixar a ampliação da infraestrutura ferroviária submetida à vontade das empresas.
Entendemos que a legislação atual é engessada e inapropriada. Mas daí a institucionalizar um modelo de ferrovia para poucos, existe um longo caminho. O remédio poderá matar de vez o paciente.
Ferrovias ativas induzem o crescimento. São um investimento sustentável Precisamos de uma política pública que as contemple como fator de desenvolvimento nacional. Há muito o que se fazer: não há integração com outros modais e, conforme já assinalamos, o transporte de passageiros é pífio, enquanto o transporte de mercadorias praticamente se resume a grãos e minérios, com poucas empresas explorando o serviço.
Ferrovia no Brasil é uma matriz logística subutilizada. A situação é de abandono. Estão hoje, infelizmente, na mesma situação das fábricas fechadas que se acumulam a cada dia no relato econômico do país.
Não é preciso ir muito longe para constatar a penúria das poucas ferrovias que continuam a operar. Em São Paulo, a empresa Rumo, ao renovar sua concessão, comprometeu-se a recuperar trechos abandonados de Bauru a Panorama e de Araraquara, Barretos e Colômbia. Nada foi feito. No estado, os trens trafegam a velocidade de navio: média de 22 quilômetros por hora. De Paratinga, na Baixada Santista, até o porto de Santos, um trecho de cerca de 30 quilômetros, uma composição pode levar mais de oito horas para cumprir o trajeto. E essa é apenas uma amostra da situação vexaminosa das ferrovias em operação. É esse cenário com o qual teremos que nos conformar nos próximos 20, 30 anos?
Trazendo à baila a questão dos portos, outra área abandonada de nossa infraestrutura (basta circular pela Baixada Santista e verificar o quanto estamos relegando o potencial da atividade portuária), cumpre-nos estabelecer a necessidade de o Brasil buscar parcerias estratégicas que possam revigorar não apenas as ferrovias, mas também outros modais de transporte, cuja deficiência operacional significa atraso e custos inconcebíveis para o país.
Dilapidada e até mesmo ridicularizada pelo governo Bolsonaro, em mais um de seus atos inconsequentes, a relação Brasil-China seria uma via natural e sólida para construirmos uma política consistente de reconstrução e retomada de crescimento. O que significa, no caso das ferrovias, dotar o país de um transporte de um lado eficiente para toda a sorte de mercadorias e, de outro, apto para receber a bordo uma camada cada vez maior da população.
A China e suas indústrias são referência nos grandes projetos de infraestrutura, contando inclusive no passado com a experiência de construtoras brasileiras, que levaram sua expertise para o outro lado do mundo, quando nossa Engenharia era motivo de orgulho nacional. Por que não contemplar e resgatar a parceria sino-brasileira para construirmos um futuro diferente desse cenário sombrio que se avizinha, com Estado omisso e um reduzido número de empresas se beneficiando dessa situação?
O tema precisa ser amplamente discutido com a sociedade. Um novo marco legal deveria contemplar de forma cristalina os interesses públicos para que não tenhamos enorme prejuízo com nossas ferrovias nas próximas décadas.
Precisamos assegurar que todos, indistintamente, possam fazer uso delas!
Colunistas Artigo
Ferrovias do Brasil: sem Estado e em estado de abandono
A mais nova demonstração de que o governo federal não possui qualquer planejamento de longo prazo para o crescimento econômico foi a tentativa de levar adiante uma Medida Provisória para estabelecer um novo marco legal para as ferrovias.
Por José Manoel Ferreira Gonçalves é engenheiro e presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente)
O desgoverno da gestão de Bolsonaro se torna cada vez mais evidente. Quem ainda nutria alguma esperança de que haveria algum sinal de pensamento estratégico e de projeto nacional vindos de Brasília, já desistiu. A mais nova demonstração de que o governo federal não possui qualquer planejamento de longo prazo para o crescimento econômico foi a tentativa de levar adiante uma Medida Provisória para estabelecer um novo marco legal para as ferrovias.
Com a famigerada MP 1065, o Estado praticamente lavaria as mãos e entregaria os trilhos do país à vontade da iniciativa privada. E tudo isso, pasmem, com os aplausos do Ministério da Infraestrutura, que alguns, desavisados ou malintencionados, insistem em apontar como exemplo de atuação e modernidade do atual governo.
De acordo com o texto da MP, trechos ociosos de ferrovias poderiam ser explorados pela iniciativa privada por meio de autorizações e as próprias empresas – acreditem – poderiam se autorregular, sem interferência do Estado. Trechos sem interesse para os empresários estariam portanto condenados ao abandono, muito provavelmente por décadas a fio, Seria uma temeridade e, no limite, um crime de lesa-pátria,
Não é de hoje que vimos esse filme, Com a desculpa de desburocratizar e destravar os investimentos, abdica-se de levar adiante uma política que incentive o transporte de insumos e manufaturados por meio dos trilhos a todas as regiões do país, e não apenas se ocupe da exportação de grãos e minérios de ferro; uma política que permita também a valorização do modal ferroviário no transporte de passageiros, a exemplo de países avançados e continentais, onde as ferrovias são orgulho nacional e protagonistas na integração entre diferentes regiões, ocupando um verdadeiro papel social.
A natimorta MP das ferrovias foi mais uma vergonhosa tentativa de puxadinho por parte do governo, perpetrada por quem não quer, de fato, resolver o problema das ferrovias, mas sim criar oportunidades.
O assunto precisa ser alvo de discussões democráticas no Legislativo, com a participação popular. O futuro dos trilhos do país não pode ser mais uma pauta do desastroso tratoraço com o governo federal tem ido a campo para dilapidar o patrimônio público e os recursos naturais da nação.
Uma oportunidade de discussão surgiu com a iniciativa do Senado de evocar junto ao Executivo a devolução da MP 1065, sob a justificativa de que já existe matéria na Casa – o PLS 261/18 – que versa sobre as mesmas disposições.
Ainda que este careça de inúmeros aperfeiçoamentos, o projeto de lei do Senado é um instrumento que poderá ser discutido com propriedade pela sociedade civil, ao contrário do que pretendeu fazer por meio da MP.
José Manoel Ferreira Gonçalves Sistema ferroviário nacional
Derrapada irresponsável do Senado no marco das ferrovias
Principal mudança proposta pelo PL, que agora vai a plenário na Câmara dos Deputados, é a adoção da chamada modalidade de “autorização” em oposição ao tradicional modelo de concessão, pelo qual o Estado estabelece as metas para a operação dos atuais trechos ou construção de novas linhas.
Por José Manoel Ferreira Gonçalves é engenheiro e presidente da Frente Nacional pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente)
Foi um duro golpe para quem defende o resgate do sistema ferroviário nacional. No último dia 5 de outubro, 33 anos após a histórica sessão que trouxe à luz o atual texto constitucional, o Senado aprovou o projeto de lei que ficou conhecido como o novo marco legal das ferrovias.
A principal mudança proposta pelo PL, que agora vai a plenário na Câmara dos Deputados, é a adoção da chamada modalidade de “autorização” em oposição ao tradicional modelo de concessão, pelo qual o Estado estabelece as metas para a operação dos atuais trechos ou construção de novas linhas.
Concessões pressupõem licitações, pelas quais o governo tem a oportunidade de exercer sua prerrogativa de fazer valer os interesses estratégicos da nação, ou seja, fazer política pública voltada para o uso amplo e democrático da ferrovia, hoje muito distante de ocupar o papel a ela reservado em países continentais como o nosso – o de integração e motor para o desenvolvimento nacional.
Com a permissão à autorização, empresas privadas poderão assumir a operação de ferrovias apenas para atender a seus interesses, sem se importar com o uso público dos trens ou mesmo admitir a possibilidade de que outros operadores privados possam empregar a infraestrutura – pública, em sua natureza – para também transportarem produtos e matérias-primas.
Hoje, as ferrovias brasileiras estão praticamente restritas à logística de grãos e minério de ferro. Itens essenciais como produtos alimentícios e medicamentos – que poderiam ser transportados por trilhos, com custo menor do que o praticado no transporte rodoviário, em uma redução passível de ser repassada para o consumidor – estão fora das ferrovias e sujeitos à alta de combustíveis e ao humor dos caminhoneiros que ameaçam a normalidade do país com greves cada vez mais frequentes.
E essa situação pode piorar com o sistema de autorização. Quem já domina as ferrovias deve se perpetuar com a exploração do bem público por mais décadas a fio. A lógica do lucro vai prevalecer. O transporte de passageiros, por sua vez, estará definitivamente condenado.
Com a aprovação célere desse marco legal, o Senado foi de uma enorme irresponsabilidade com o interesse comum. A decisão exime o Estado de exercer seu papel de formulador das políticas públicas. Transporte é estratégico. É dever do Estado e direito do cidadão. É necessário que tenhamos ações integradas que permitam a ampla utilização das ferrovias, com segurança e extensiva a toda a população, e que elas possam ser um fator de integração nacional. Essas diretrizes precisam vir de Brasília. Qualquer ato que fira os direitos do cidadão deve ser considerado inconstitucional.
Diante dessa exploração privada e destituída de interesse comum do patrimônio público que se afigura com o marco das ferrovias, entraremos com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para questionar os princípios de tão inoportuna lei.
O Brasil precisa de ferrovia para todos, e não apenas para alguns escolhidos.
Colunistas Opinião
Enquanto o Brasil patina, Europa avança na integração ferroviária do continente
Enquanto o Brasil aponta para o retrocesso na política pública para suas ferrovias, a Europa dá exemplo de integração a partir dos trilhos.
Por José Manoel Ferreira Gonçalves, engenheiro e presidente da Ferrofrente.
Enquanto o Brasil aponta para o retrocesso na política pública para suas ferrovias, com a assunção do modelo de autorização em vez da abertura de concorrências públicas, a Europa dá exemplo de integração a partir dos trilhos.
No início de outubro, estivemos em Portugal e presenciamos a partida de um “comboio” (como as composições ferroviárias são conhecidas em terras lusitanas) que irá percorrer 26 nações, conectando todo o continente.
Por que uma jornada como essa não é possível aqui, no Brasil? Por que, apesar de possuirmos 30 mil quilômetros de linhas – e tendo a necessidade urgente de dotarmos o país de uma alternativa econômica, segura e eficaz de transporte de cargas e passageiros, conforme ficou claro nos últimos dias, com mais uma ameaça de paralisação dos caminhoneiros –, por que afinal, ainda assim, o trem aqui é relegado a segundo plano?
É certo que a priorização do transporte ferroviário envolve tanto a vontade política quanto a percepção do Estado sobre o papel das ferrovias. Posturas que, infelizmente, estão em falta no Brasil.
No caso do Velho Mundo, as nações enxergam no trem não apenas oportunidades econômicas, com o turismo à frente, mas também a chance de reduzir suas respectivas emissões de gases de efeito estufa, com a racionalização do uso mais intenso do modal.
Este 2021 foi designado, aliás, como o Ano Europeu do Transporte Ferroviário. Com mais essa motivação para a experimentação das viagens sobre trilhos, a Comissão Europeia pretende salientar os benefícios do transporte ferroviário enquanto meio de transporte sustentável, inteligente e seguro. Várias atividades estão destacando o setor ao longo deste ano, a fim de incentivar a utilização do modal ferroviário pelos cidadãos e empresas. Outro objetivo é contribuir com o Pacto Ecológico da União Europeia para a neutralidade climática até 2050.
Mas, ainda que haja uma tradição no uso dos trens, a Europa apresenta queda nos números do setor, sob o impacto generalizado das restrições causadas pela pandemia: apenas 7 % dos passageiros utilizam o transporte ferroviário e somente 11 % das mercadorias são assim transportadas. Portanto, o Ano Europeu do Transporte Ferroviário foi uma iniciativa muito bem-vinda. O meio ambiente também agradece.
Entre os países da União Europeia, o transporte ferroviário é responsável por menos de 0,5 % das emissões de gases com efeito de estufa relacionadas com os transportes, o que faz dele uma das formas mais sustentáveis de transporte de passageiros e de mercadorias. Entre outros benefícios, o transporte ferroviário é ainda excecionalmente seguro.
A Europa sinaliza, portanto, um renascimento do trem como fator de integração, crescimento econômico e sustentabilidade. Que as lições desse reaprendizado europeu nos sirvam como inspiração para podermos recuperar nossas ferrovias e colocá-las a serviço de um projeto de nação próspera e igualitária.
O futuro, tanto lá, como cá, está no transporte ferroviário.