Criolano Xavier
Alimento, comércio e guerra
Cerca de 70% da nossa produção agro fica no mercado interno, que é autossuficiente, embora com gargalos de desigualdade social e nutricional
Por Coriolano Xavier
Um dos fundamentos do marketing reza que o cliente é uma entidade a ser mantida em estado de encantamento constante, ou algo muito próximo disso. Esse é o ideal. Quanto maior o encantamento, maior o potencial de fidelidade e agregação de valor. A União Europeia (UE), por exemplo, é um cliente brasileiro de US$ 16 bilhões (2020), com importações de grãos, carnes e frutas, principalmente.
Olhando pelo valor é um cliente bom, embora distante do nosso número 1, a China, com importações de US$ 36 bilhões (2020). Como nem tudo é perfeito, a Europa também é aquele cliente tipo bocudo, que reclama do fornecedor publicamente, inclusive na imprensa, mas que devemos cultivar com diplomacia e cautela, não só pelo que representa hoje, mas pelo que pode vir a ser no futuro, a bordo de um acordo comercial Mercosul-União Europeia.
Nas artes da diplomacia e do comércio, conhecer bem o interlocutor e o clima negocial é pressuposto essencial. A Europa vive mudanças de lideranças políticas e com isso pode elevar o tom crítico ao agro brasileiro nos próximos tempos, em nome de bandeiras ambientais e de engajamento na questão climática. Tudo temperado por algum viés ideológico e um pano de fundo concorrencial, afinal Brasil e UE são concorrentes no mercado mundial de alimentos.
Na Alemanha, de governo novo com o chanceler Olaf Scholz, após 16 anos com a chanceler Angela Merkel, a nova ministra das Relações Exteriores é Annalena Baerbok, uma das líderes do Partido Verde e simpática a movimentos de pressão global sobre a Amazônia. No gabinete alemão também figura outro líder do Partido Verde em cargo estratégico, Robert Habeck, político que está à frente do Ministério das Finanças e Proteção Climática.
A França, outra nação com influência forte na política internacional da UE, terá eleições em abril e os chamados “verdes” são força política ascendente por lá. Como o país assumirá a presidência rotativa da UE neste ano, um fortalecimento eleitoral das bandeiras ambientalistas poderá trazer maior pressão de opinião pública sobre o nosso agro e o acordo Mercosul-UE. Pode até evoluir para um aumento do protecionismo, como já se ensaiou recentemente, insuflando restrições a produtos brasileiros, dada a condução de nossa política ambiental.
De nosso lado, há valores de troca estratégicos para se colocar na mesa. Por exemplo: a segurança alimentar mundial, da qual o Brasil é fiador importante; a nossa revolução agrícola tropical sustentável, em expansão e ensinando os trópicos a produzir melhor; e a maior reserva biológica do mundo, cujo manejo adequado pode representar vantagens comparativas essenciais na descarbonização da economia mundial. Isto nós temos e podemos negociar com o mundo (será que queremos?), ainda usando para construir novas percepções sobre o Brasil, pois hoje em dia os conflitos (comerciais ou não) são guerras de narrativas também.
Tudo isso estará agora sob a influência dos impactos da guerra na Ucrânia, com seu potencial de estimular políticas protecionistas na Europa, debilidade geopolítica das potências e, talvez, até novos blocos de poder euroasiáticos. Além, é claro, dos efeitos econômicos imediatos do conflito, como a escalada de preços das commodities, algum impulso na inflação mundial e o desarranjo em cadeias globais de fornecimento, como ocorre com os fertilizantes.
Cerca de 70% da nossa produção agro fica no mercado interno, que é autossuficiente, embora com gargalos de desigualdade social e nutricional. Assim, os horizontes de crescimento da nossa agropecuária apontam para além-mar e não apenas com commodities, mas também com alimentos de valor agregado e alinhados com as expectativas dos mercados mundiais quanto à saúde, uso responsável de recursos naturais e transparência com os consumidores. Tudo em meio a cenários de incertezas, transições e volatilidade. Protagonizar no mercado internacional de alimentos, nesse mundo, não será tarefa para amadores.
Criolano Xavier Artigo
A primavera, o livro e o ex-ministro
De região considerada “improdutiva”, o Cerrado representa hoje cerca de 50% da soja e do milho produzidos no país
Por Coriolano Xavier, membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS) e Professor da ESPM
A primavera chegou anunciando o lançamento do livro “Alysson Paolinelli – o visionário da agricultura tropical”, que concluiu a mobilização pela indicação do professor e ex-ministro ao Prêmio Nobel da Paz 2021, cujo resultado será anunciado no próximo dia 08. Se for agraciado, será o primeiro Nobel para um brasileiro e o segundo Nobel da Paz na agricultura, em 120 anos de história desta premiação. O primeiro Nobel ligado à produção de alimentos foi para o norte-americano Norman Borlaug, em 1970, por ter criado a Revolução Verde, que propagou a agricultura de alta tecnologia pelo mundo.
Alimento é paz. Esta é a conexão conceitual entre os trabalhos de Borlaug e Paolinelli, que concorre com mais de 300 indicados ao prêmio, neste ano. Um desafio enorme. Quanto ao livro, é obra de 15 autores especialistas em diferentes áreas do conhecimento. É um estudo amplo, provavelmente o mais completo sobre a vida, obra e legado de Alysson Paolinelli. Mais ainda: o livro mergulha na grande transformação agrícola ocorrida no país nos últimos 50 anos, mudando a fisionomia do Cerrado e seus 1.102 municípios, além da dinâmica e vocação da agricultura tropical.
De região considerada “improdutiva”, o Cerrado representa hoje cerca de 50% da soja e do milho produzidos no país, mais de 90% do algodão e 25% do café, sem contar a expansão da proteína animal na região. O Brasil foi o quarto país que mais contribuiu para a expansão do valor da produção mundial de alimentos no período 1971-2016 e responde atualmente por cerca de 40% do comércio internacional de alimentos básicos, tornando-se um protagonista das estratégias globais de segurança alimentar.
O livro reaviva toda essa história e costura as realizações de Paolinelli e a revolução agrícola tropical num só olhar. Só por isso já vale a leitura. Mas a obra também analisa os números e impactos dessa enorme mobilização (humana e tecnológica) transformadora do campo brasileiro, discutindo os caminhos que dela se abrem para o futuro, no próprio Brasil e nas áreas tropicais do planeta. E quem se interessar pode obter gratuitamente o livro por download, no seguinte link: https://paolinelli-nobelpeaceprize2021.com/ebook-alysson-paolinelli-o-visionario-da-agricultura-tropical/
Aliás, pelo livro e pela ampla mobilização feita no agro e na sociedade, a indicação de Paolinelli ao Nobel já rendeu valiosos frutos. Independente do prêmio, Paolinelli ganhou grande reconhecimento no país e o Brasil ganhou novos conhecimentos sobre um dos momentos mais importantes da história econômica recente da nação. Sem contar a esperança de ter ampliado a sensibilização e o empoderamento da produção alimentar sustentável, que ajuda a reduzir vulnerabilidades estruturais como fome, desigualdade e degradação do meio ambiente.
Criolano Xavier Opinião
Apontando caminhos
Países tropicais já representam cerca de 40% do valor das exportações mundiais de alimentos
Artigo escrito por Coriolano Xavier, membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS) e Professor da ESPM
A agricultura dos trópicos é um dos fatos mais relevantes para a segurança alimentar mundial, na perspectiva de um futuro próximo. Será do mundo tropical que sairão os alimentos básicos para abastecer o crescimento populacional do planeta. Os países tropicais já representam cerca de 40% do valor das exportações mundiais de alimentos e o papel da região no abastecimento do planeta é inegável. Só o Brasil exporta para mais de 170 países e alimenta mais de 770 milhões de pessoas, cerca de 10% da população mundial, segundo artigo¹ de Elísio Contini e Adalberto Aragão, pesquisador sênior e analista da Embrapa, respectivamente.
Agora em março, de 22 a 26, acontece a I Semana Internacional de Agricultura Tropical – AgriTrop, promovida pela Embrapa e pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). O evento (http://www.embrapa.br/agritrop21) reunirá especialistas do Brasil e de outros países tropicais da América Latina, África e Ásia; entre eles a Índia, país com uma população gigante, cerca de 1,4 bilhão. Será um olhar sobre o que está acontecendo na agricultura tropical, o que há de mais novo, moderno e sustentável no setor.
O enfoque prioritário será analisar os pontos fortes, maiores desafios e estratégias de melhoria, tudo discutido por gente de reputação em ciência e tecnologia agrícola, governança de cadeias produtivas e relações internacionais. A proposta é construir consensos para produzir mais e melhor, no campo e nas cadeias produtivas. E tudo de olho no segundo semestre, reunindo subsídios técnicos para a Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares das Nações Unidas, que ocorre em setembro de 2021, com o objetivo de tornar os sistemas alimentares mais sustentáveis e igualitários, colocando-os na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) da ONU.
Por que tudo isso é importante para o Brasil? Primeiro, para estabelecer entendimentos sobre novos caminhos para a segurança alimentar e a sustentabilidade no agro, levando um pensamento consistente do agro brasileiro e latino-americano para a Cúpula das Nações Unidas sobre alimentação. A agropecuária tropical foi a que mais avançou na produção de alimentos básicos, tornando-se um fiel da balança para a segurança alimentar mundial. E, para fortalecer ainda mais a sua liderança nessa nova realidade, o Brasil poderá levar à Cúpula proposições de vanguarda para a produção sustentável de alimentos.
Nosso país tem história e currículo para tanto, pois começou lá atrás com a Revolução Agrícola Tropical Sustentável de Alysson Paolinelli, anos 1970, que inclusive será homenageado no evento AgriTrop por sua indicação para o Prêmio Nobel da Paz 2021. O Brasil pode compartilhar essa longa experiência com o restante do mundo tropical. Agnes Kalibata, enviada especial da ONU ao Brasil, assim resumiu em janeiro último: “A Cúpula só terá efetividade em apontar caminhos, (…) se nós potencializarmos com sucesso o conhecimento e a experiência coletiva da maneira mais ampla possível, em diversos setores”. Em outras palavras: integração, consenso e cooperação. Multilateral.
Criolano Xavier Opinião
Menos “achismo”, mais ciência
Afinal, é a ciência que vai tirar o mundo de uma enrascada colossal
Artigo escrito por Criolano Xavier, membro do CCAS – Conselho Científico Agro Sustentável
Tempo esquisito esse em que vivemos, quando um vírus apaga as fronteiras nacionais, torna o planeta seu território, cientistas saem em desabalada corrida para desenvolver uma imunização, fazem isso em tempo recorde e, mesmo assim, a ciência com frequência é negligenciada ou colocada sob suspeita. Não que se espere devoção, já que o espírito científico vive do pensamento crítico. Mas um senso de realidade mais forte bem que viria a calhar.
Afinal, é a ciência que vai tirar o mundo de uma enrascada colossal. Tombo de 4,4% na economia mundial e de 9% nas exportações globais, em 2020. No Brasil, a queda do PIB está estimada em 5,8% (FMI) e a taxa de desemprego bateu em 14%. Além disso, as contas internas estão fragilizadas, com déficit nominal de R$ 1,2 trilhão (16% do PIB) e dívida pública perto de R$ 7 trilhões (93% do PIB), sob o impulso de gastos extras para aliviar os impactos da covid-19.
Ótimo que o nosso agro foi exceção nesse cenário desolador. Mas a essa altura o mundo já sabe: só com a neutralização do vírus o planeta retomará a pulsação socioeconômica que todos desejamos, dando inclusive mais sustentação aos setores que agora se saíram bem. Isso já começou a acontecer e, mais uma vez, a ciência (conhecimento) demonstra o seu papel inestimável para nossa superação histórica e existencial.
Foi um episódio notável. Cientistas chineses sequenciaram o genoma do sars-cov 2 em semanas e compartilharam a descoberta com o mundo. Em ritmo surpreendente a comunidade científica internacional desvendou origem, ação, alvos e hipóteses para neutralizar o vírus. Um ano depois a humanidade já celebra a chegada das vacinas, duas delas baseadas em uma inovação radical, a molécula conhecida como “RNA mensageiro”. Um tempo recorde em tecnologia de imunização.
Essa força da ciência todos a conhecemos bem no agro. Foi com base em tecnologia inovadora que o Brasil fez a chamada revolução agrícola tropical sustentável, no bioma do Cerrado. Com ela, a produção e a produtividade agrícolas deram saltos, veio a autossuficiência alimentar e o país tornou-se grande exportador. Hoje, responde por 16% do comércio internacional de alimentos básicos, um destaque na segurança alimentar mundial.
São dois exemplos eloquentes e há centenas de outros, talvez milhares, gerados pelo saber científico. Ciência cura, ciência alimenta. A história já comprovou e não devemos esquecer. Principalmente em momento como o atual, no qual o império das opiniões e dos “achismos” corre à solta, turbinado pelas redes sociais e confrontando a odisseia de conhecimento que trouxe o homem até aqui.
É uma onda que se comporta como se a evidência concreta, científica, tivesse menor valor para se fazer uma afirmação, do que a identidade de quem afirma. Atualmente, acontece com esquisita frequência, não só com relação à pandemia ou saúde, mas também com agricultura, alimentos, nutrição, economia e até astronomia, por incrível que pareça. Isso está cansando. Sensação de retrocesso, além de tempo e energia desperdiçados.